Eu ouvi o canto das sereias
Ulisses
Estou deitado no meu quarto quando ouço
um estrondo vindo da sala. Levanto de sobressalto. Não encontro vestígios. É a
hora do pôr-do-sol. Vou para a janela. Pouso meu olhar sobre o horizonte.
Subitamente recuo o foco. Percebo que o vidro da janela, através do qual eu
estava olhando, tornou-se menos transparente. Há uma marca sobre o mesmo numa
pequena área pelo lado de fora - um certo líquido sujo de pó, uma gotícula de
sangue e pequenas penugens que se grudam ao líquido e a esse sangue. Estaria nesse
vestígio a razão de tal estrondo? Um embate entre o corpo de um pássaro e o
vidro. Ou a desrazão de um golpe de asas de um anjo que me chama para ver o
crepúsculo ? Há um registro. E um mundo querendo entrar.
O horizonte é
depósito de muitos sonhos. Imigrantes, viajantes e nômades são hábeis em ouvir
o seu canto. Para os antigos era o fim do mundo e abrigava monstros, abismos e
sereias. De um jeito ou de outro parece ser a margem do mundo visível. A pele
entre o real e a ficção, o relato e o romance, a separação entre o meu mundo e
o eterno território do Outro. Linha fugidia. Não se rende nunca ao nosso corpo.
Admite ser tocada somente pelo olho. Afasta-se a cada novo passo que damos em
sua direção. A imaginação parece ser a única forma de habitá-lo. Será?
Carla
Zaccagnini reage a isso. Acredito que esse trabalho que entitula-se Belvedere,
por mais que esse nome evoque a aparente passividade do mirante meramente
contemplativo, nasce a partir de relações de inconformidade.
A artista começa
seu trabalho de forma vigorosa justamente em uma operação sobre a excessiva
carga de evocações que nos impede de pensar o horizonte de uma maneira mais
livre. Como poderíamos tocá-lo, manipulá-lo e reposicioná-lo se o peso
semântico transcende em muito a potência de uma existência? Há que esvaziá-lo.
E penso ser esse o trabalho invisível de Carla - reagir ao excesso de
atribuições de seu objeto de interesse para que, uma vez esvaziado e
desamarrado, crie-se um espaço onde se possa resignificá-lo, reposicioná-lo e
repensá-lo a partir de uma perspectiva que aqui se faz pessoal.
O trabalho
começa a tornar-se visível a partir desse momento.
Carla pousa seus olhos
sobre essa epiderme que está entre o céu e o conjunto de prédios que circundam
o Torreão - alguns mais perto e outros mais distantes (lembro que, a partir do
local em questão, vemos o horizonte urbano que por si só já está mais perto e é
menos assustador do que o longíquo horizonte das planícies). Percorrendo esse
desenho com o olhar, a artista começa a descolá-lo de seu domicílio original.
Isola tudo o que não for linha e lentamente transfere-a para a parte de dentro
do Torreão, ou melhor, para os vidros de suas inúmeras janelas. Opera assim um
transplante de um fio específico e vai delicadamente envolvendo todo esse
espaço. Demarca sua abrangência física. Linha frágil e delicada. Quem diria que
um dia suportou o peso do céu?
O procedimento dessa ação, que assemelha-se a uma
escrita, não acontece como uma adição de matéria sobre uma superfície, mas a
partir de uma subtração. O instrumento usado por Carla vai como que
"comendo o vidro" e criando o desenho a partir da opacificação de uma
fina linha sobre essa lâmina transparente. Confrontamo-nos então com uma outra
camada desse trabalho que é o delicado embate do corpo da artista com essa
superfície de vidro que separa o Torreão do mundo lá fora. E encontramos também
aí a sutil agressão do ato de arranhar essa pele do mirante que, a partir dessa
(re)ação, faz sangrar um novo horizonte, agora particular. Há desconforto. E um
horizonte querendo sair. De si.
Limite da visibilidade e limite do espaço onde
me encontro. Interferência sobre a membrana, agora visível, que me separa desse
mundo e que divide a cidade do que está além. Divisão fertilizadora de sonhos.
Provoca. Fusão do distante com uma perspectiva pessoal e próxima. O intocável
passa a ser delicadamente tangível. Há ausência de pudor na proposição de mexer
em algo tão consagrado e carregado. Desenraizar para poder tecer. O exercício
da arte como ação emancipadora e capaz de aliviar o peso do que está dado.
Roubar o mundo dele mesmo para poder pensá-lo. Deslocar. E nesse movimento
fundar novos territórios. Exercício necessário. Desejo que parece não ser
somente humano, mas do mundo. Há um mundo querendo. Sair. De si. Para o Outro.
E há quem ouça.
Jorge Menna Barreto
2002
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