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O
c o m e ç o
p e l o
m e i o









Não buscaríamos origens, mesmo perdidas ou rasuradas, mas pegaríamos as coisas onde elas crescem, pelo meio: rachar as coisas, rachar as palavras. (2)
Gilles Deleuze








A palavra não tem a menor possibilidade de
e x p r e s s a r
alguma coisa. Tão logo começamos
a pôr nossos pensamentos em
palavras e frases, tudo sai
e r r a d o. (3)

Marcel Duchamp




Já de início, temos uma citação de Marcel Duchamp, desconfiando do poder das palavras de expressarem algo. E faço minhas as suas palavras, pois também




des





E quando se desconfia, se analisa, perscruta, investiga. Quebra, estica, desconstrói, reconstrói. Macera, pulveriza, arrasta e tensiona. Joga, queima, funde, forja. E se você desconfiar em português, na primeira pessoa, pode encontrar o





E tecer. E emaranhar. E desafiar. E riscar.

A citação acima, se tivesse sido dita por outra pessoa, talvez fosse entendida como mero descaso ou desprezo pelas palavras. Talvez por alguém que tenha sido mal-entendido com demasiada freqüência. No entanto, foi dita por Marcel Duchamp, alguém extremamente atento às relações entre palavras e coisas; linguagem e tradução; e suas ligações, sempre problematizadas, com os modos de significar.


Desconfiemos, então, da aparente simplicidade da sua citação, rachando-a.

A palavra não tem a menor possibilidade de expressar alguma coisa.

Para os poetas concretos brasileiros (4) , por exemplo, assim como para Mallarmé, ou Joyce (vizinhos de Duchamp?), o interesse na palavra não residia na sua possibilidade de expressar alguma coisa posta por um sujeito. Para eles, a palavra é a própria coisa, em seu aspecto material: “Tudo isto não indica outra coisa senão que: a vontade de construir superou a vontade de expressar, ou de se expressar.”(4)


Tão logo começamos a pôr nossos pensamentos em palavras e frases,

As palavras e frases não são um suporte neutro, onde podemos simplesmente pôr nossos pensamentos, um conteúdo que nelas irá residir em segurança enquanto aguarda alguém que venha lhes resgatar. Elas podem fazer com que o conteúdo que depositamos nelas seja flexionado, distorcido, deformado, remodelado. A palavra age e pulsa, e transforma. Por isso, para Duchamp, neste processo,

tudo sai errado.

Mas que idéia é essa de “errado”? O que sai errado? Talvez, errado possa ser lido como distante, referindo-se à distância do que foi posto em relação à sua suposta origem (no pensamento de um sujeito?), onde estaria o que é “certo”, o original.

Errado, em português, pode ter sido algo que errou. Errar também é movimentar-se por aí, vaguear, e distanciar-se de sua origem. Certamente essas palavras de Duchamp não foram pronunciadas em português. O jogo entre errar (errado) e errar (vaguear) é, neste caso, uma possibilidade de leitura que se gera na tradução para o português, obviamente imprevisto pelo autor. Neste
caso, a tradução, ou o distanciamento do original, abre novas possibilidades de leitura (erradas?). Se Duchamp depositou algo nessas palavras e frases, por mais que possa ter sido ambíguo, não poderia prever todas as suas saídas, como a que faço agora no português.

Nesse sentido sair errado também nos dá outra dica de abordagem desta citação. O verbo sair está ligado a um movimento de exteriorização. Toda palavra pressupõe um leitor. É dele a responsabilidade sobre a “saída” do que nas palavras foi depositado, a exteriorização de um possível significado. Mas já não tem a menor possibilidade de que a coisa que foi depositada saia certo, ou, próxima da intenção de quem a colocou. Ela sai multiplicada pelo coeficiente artístico. (6)

É como este texto que você acabou de ler, tudo errado.


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(1) Este texto pertence originalmente à dissertação de mestrado “Lugares Moles”, de minha autoria, defendida em 2007 no Programa de Pós-Graduação da ECA-USP. Foi publicado e traduzido pela revista Tatuí, a convite de Clarissa Diniz.
(2) DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro. editora 34, 1992, p. 108.
(3) THOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp. Ed. CosacNaify, São Paulo, SP, 2005, p. 77 (grifos meus).
(4) Entre eles, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos.
(5) CAMPOS, Haroldo e Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. Ed. Livraria Duas Cidades, 1975, p. 125.
(6) Marcel Duchamp discute a participação do público no processo de significação das obras de arte apresentando o conceito de coeficiente artístico, que seria "uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não-intencionalmente". Ver DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.



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The beginning from the middle (1)
Translated by Denise Pierrotti



We wouldn’t search for origins, even if they were lost or erased, but we would get things in the places where they grow, in the middle: to crack things, to crack words. (2)
Gilles Deleuze




Words don't have the slightest possibility of
e x p r e s s i n g
something. As soon as we start
expressing our thoughts in
words and phrases, everything goes
w r o n g. (3)
Marcel Duchamp



From the very beginning, we have a quotation of Marcel Duchamp, m i s t r u s t i n g the power of words to e x p r e s s something. I make his words as my own, as I also mistrust; translating mistrust into Portuguese I shall find the word desconfio



des







And when you mistrust, you analyze, browse, and investigate. Break, stretch, deconstruct, re-construct. Macerate, pulverize, drag and strain. Throw, burn, melt, and forge. The last syllable of the word desconfio is




which means string or thread in Portuguese. And so I weave. And entangle. And defy. And scratch.

If the quotation above had been said by someone else, maybe it would have been understood as a just a mere disregard or disdain for words. Maybe by someone who has been misunderstood far too many times. However, it was said by Marcel Duchamp, somebody extremely aware of the relations between words and things; language and translation; and their connections, always problematic, with their way of meaning.


Let’s mistrust, then, of the apparent simplicity of his quotation, breaking it down.

Words don't have the least possibility of expressing something.

For Brazilian concrete poets (4) , for example, as well as for Mallarmé or Joyce (Duchamp's neighbors?), interest in words doesn't reside in their possibility of expressing something put by someone. For them words are things in themselves, in their material aspect: “All of this indicates nothing but: the will of constructing overcame the will of expressing, or of expressing oneself.” (5)

As soon as we start putting our thoughts into words and phrases,

Words and phrases are not neutral supports where we can simply put our thoughts into, a content that will live safely while waiting for somebody who will come to rescue them. They can make the content that we place upon them deflective, distorted, deformed, remodeled. Words act and pulse and transform. That’s why for Duchamp, in this process,

everything goes wrong.

But what is this idea of being “wrong”? What is wrong? Maybe, wrong can be read as distant, referring to the distance of what was put in words in relation to its supposed origin (inside the thoughts of someone?), where the “right” content would be, the original.

The word “wrong”, in Portuguese, has double meaning. It can be something “incorrect” or something related to wandering. Both meanings can come together in this text, or, to be wrong is also to wander around, and perhaps distance oneself from its origin. Surely Duchamp’s words weren’t pronounced in Portuguese. The game between the adverb amiss (incorrect) and amiss (out of the way) is in this case, a possible reading that generates in the translation to Portuguese, obviously an incident not predicable to the author. In this case, the translation, or the detachment from the original, opens new possibilities of reading (incorrect?). If Duchamp put something into these words and phrases, no matter how ambiguous, he could not foresee all the exits, as I do in my language.

In this sense going wrong can also give us another approach to this quotation. The verb, to go is connected to a movement of externalizing. Every word foresees a reader. It is theirs the responsibility of “going” which was not placed in the words, the externalizing of a possible meaning. But there is not the least possibility that the thing which was placed would go right, or even approaching the intention of the one who placed it there. It becomes multiplied by the coefficient . (6)

It is like this text which you have just finished reading: everything is wrong.




1 This text is part of the Master’s Degree dissertation “Lugares Moles” (Butter Architecture), written by me, defended in 2007 at Postgraduation Program of the School of Communication and Art, University of São Paulo, Brazil.
2 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro. Ed. 34, 1992, p. 108.
3 THOMKINS, Calvin. Marcel Duchamp. Ed. CosacNaify, São Paulo, SP, 2005, p. 77 .
4 CAMPOS, Haroldo and Augusto de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos 1950-1960. Ed. Livraria Duas Cidades, 1975, p. 125.
5 Entre eles, Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos.
6 Marcel Duchamp discusses the participation of the audience in the process of significance of the works of art which present the concept of artistic coefficient. The artistic coefficient would be “arithmetic relationship between what remains not said although intended, and what is said unintentionally”. See DUCHAMP, Marcel. O ato criador. In: BATTCOCK, Gregory (edit.). A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 73.

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